'A armadilha' do realismo fantástico de Murilo Rubião

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Murilo Rubião é um daqueles autores que merece ser investigado e analisado em cada um de seus textos, buscando significados em cada vírgula que o autor mineiro empregava em seus contos. Pertencente ao realismo fantástico, movimento que se utiliza do absurdo e do inimaginável para seus desfechos e complicações, porém, com um fundo de realidade muito perturbador e contínuo.

Seus contos, apesar do absurdo de muitas situações, são alegorias incríveis sobre problemas da realidade que atormentavam o Brasil e que, assustadoramente, continuam com a crítica válida e aplicável na sociedade atual. São provocações das mais diversas e inusitadas e que só são compreendidas quando bem analisadas, buscando significados e intenções nas mais intrincadas palavras e atitudes.

No conto aqui selecionado, A Armadilha, Rubião se apresenta de uma das formas mais enigmáticas possíveis. As coisas se sucedem, desde a primeira atitude do protagonista, de maneira misteriosa e sem sentido. Abaixo, o texto na íntegra. Retorno, em seguida, para comentários interpretativos.

A Armadilha

Alexandre Saldanha Ribeiro. Desprezou o elevador e seguiu pela escada, apesar da volumosa mala que carregava e do número de andares a serem vencidos. Dez.

Não demonstrava pressa, porém o seu rosto denunciava a segurança de uma resolução irrevogável. Já no décimo pavimento, meteu-se por um longo corredor, onde a poeira e detritos emprestavam desagradável aspecto aos ladrilhos. Todas as salas encontravam-se fechadas e delas não escapava qualquer ruído que indicasse presença humana.

Parou diante do último escritório e perdeu algum tempo lendo uma frase, escrita a lápis, na parede. Em seguida passou a mala para a mão esquerda e com a direita experimentou a maçaneta, que custou a girar, como se há muito não fosse utilizada. Mesmo assim não conseguiu franquear a porta, cujo madeiramento empenara. Teve que usar o ombro para forçá-la. E o fez com tamanha violência que ela veio abaixo ruidosamente. Não se impressionou. Estava muito seguro de si para dar importância ao barulho que antecedera a sua entrada numa saleta escura, recendendo a mofo. Percorreu com os olhos os móveis, as paredes. Contrariado, deixou escapar uma praga. Quis voltar ao corredor, a fim de recomeçar a busca, quando deu com um biombo. Afastou-o para o lado e encontrou uma porta semicerrada. Empurrou-a. Ia colocar a mala no chão, mas um terror súbito imobilizou-o: sentado diante de uma mesa empoeirada, um homem de cabelos grisalhos, semblante sereno, apontava-lhe um revólver. Conservando a arma na direção do intruso, ordenou-lhe que não se afastasse.

Também a Alexandre não interessava fugir, porque jamais perderia a oportunidade daquele encontro. A sensação de medo fora passageira e logo substituída por outra mais intensa, ao fitar os olhos do velho. Deles emergia uma penosa tonalidade azul.

Naquela sala tudo respirava bolor, denotava extremo desmazelo, inclusive as esgarçadas roupas do seu solitário ocupante:

— Estava à sua espera — disse, com uma voz macia. Alexandre não deu mostras de ter ouvido, fascinado com o olhar do seu interlocutor. Lembrava-lhe a viagem que fizera pelo mar, algumas palavras duras, num vão de escada.

O outro teve que insistir:

— Afinal, você veio.

Subtraído bruscamente às recordações, ele fez um esforço violento para não demonstrar espanto:

— Ah, esperava-me? — Não aguardou resposta e prosseguiu exaltado, como se de repente viesse à tona uma irritação antiga: — Impossível! Nunca você poderia calcular que eu chegaria hoje, se acabo de desembarcar e ninguém está informado da minha presença na cidade! Você é um farsante, mau farsante. Certamente aplicou sua velha técnica e pôs espias no meu encalço. De outro modo seria difícil descobrir, pois vivo viajando, mudando de lugar e nome.

— Não sabia das suas viagens nem dos seus disfarces.

— Então, como fez para adivinhar a data da minha chegada?

— Nada adivinhei. Apenas esperava a sua vinda. Há dois anos, nesta cadeira, na mesma posição em que me encontro, aguardava-o certo de que você viria.

Por instantes, calaram-se. Preparavam-se para golpes mais fundos ou para desvendar o jogo em que se empenhavam.

Alexandre pensou em tomar a iniciativa do ataque, convencido de que somente assim poderia desfazer a placidez do adversário. Este, entretanto, percebeu-lhe a intenção e antecipou-se:

— Antes que me dirija outras perguntas — e sei que têm muitas a fazer-me — quero saber o que aconteceu com Ema.

— Nada — respondeu, procurando dar à voz um tom despreocupado.

— Nada?

Alexandre percebeu a ironia e seus olhos encheram-se de ódio e humilhação. Tentou revidar com um palavrão. Todavia, a firmeza e a tranqüilidade que iam no rosto do outro venceram-no.

— Abandonou-me — deixou escapar, constrangido pela vergonha. E numa tentativa inútil de demonstrar um resto de altivez, acrescentou: — Disso você não sabia!

Um leve clarão passou pelo olhar do homem idoso:

— Calculava, porém desejava ter certeza.

Começava a escurecer. Um silêncio pesado separava-os e ambos volveram para certas reminiscências que, mesmo contra a vontade deles, sempre os ligariam.

O velho guardou a arma. Dos seus lábios desaparecera o sorriso irônico que conservara durante todo o diálogo. Acendeu um cigarro e pensou em formular uma pergunta que, depois, ele julgaria, desnecessária. Alexandre impediu que a fizesse.

Gesticulando, nervoso, aproximara-se da mesa:

— Seu caduco, não tem medo que eu aproveite a ocasião para matá-lo. Quero ver sua coragem, agora, sem o revólver.

— Não, além de desarmado, você não veio aqui para matar-me.

— O que está esperando, então?! — gritou Alexandre. — Mate-me logo!

— Não posso.

— Não pode ou não quer?

— Estou impedido de fazê-lo. Para evitar essa tentação, após tão longa espera, descarreguei toda a carga da arma no teto da sala.

Alexandre olhou para cima e viu o forro crivado de balas. Ficou confuso. Aos poucos, refazendo-se da surpresa, abandonou-se ao desespero. Correu para uma das janelas e tentou atirar-se através dela. Não a atravessou. Bateu com a cabeça numa fina malha metálica e caiu desmaiado no chão.

Ao levantar-se, viu que o velho acabara de fechar a porta e, por baixo dela, iria jogar a chave.

Lançou-se na direção dele, disposto a impedi-lo. Era tarde. O outro já concluíra seu intento e divertia-se com o pânico que se apossara do adversário:

— Eu esperava que você tentaria o suicídio e tomei precaução de colocar telas de aço nas janelas.

A fúria de Alexandre chegara ao auge:

— Arrombarei a porta. Jamais me prenderão aqui!

— Inútil. Se tivesse reparado nela, saberia que também é de aço. Troquei a antiga por esta.

— Gritarei, berrarei!

— Não lhe acudirão. Ninguém mais vem a este prédio. Despedi os empregados, despejei os inquilinos.

E concluiu, a voz baixa, como se falasse apenas para si mesmo:

— Aqui ficaremos: um ano, dez, cem ou mil anos.

É um conto simples, preciso e direto. Em uma primeira análise, não esconde nada de crítica ou significado oculto por trás. É apenas um homem que acaba por se encontrar numa sala com um homem velho e segurando um revólver. Porém, se melhor observado, vemos que a primeira atitude do protagonista já é sem sentido algum. Quem, em sã consciência, subiria dez andares com uma mala pesada?

O fator fantástico é visto posteriormente também. O desenrolar do momento de tentativa de suicídio é totalmente aleatório, em um primeiro momento. Além disso, alguns aspectos ficam obscurecidos: não conseguimos entender quem é Ema, o velho ou o protagonista. São personagens, aparentemente, aleatórios e que não possuem profundidade psicológica. Porém, tudo muda numa interpretação mais profunda.

Uma das significações dada ao conto, a mais fraca, a meu ver, é que Rubião pretendia criticar a sociedade, que acaba se tornando refém de si própria. É uma sociedade retrógada, que tem a solidão e a incomunicabilidade como características. É uma consequência da existência humana.

Porém, a segunda interpretação é a mais crível e incrível. Existe uma técnica literária chamada Anel de Möbius. Raramente empregada, por sua complexidade, é quando um texto acaba por tomar um caráter infinito e cíclico. É uma história sem fim. Os outros, conto de Neil Gaiman já analisado aqui no Canto do Conto, é um exemplo.

No texto de Rubião, o personagem, na verdade, é colocado no lugar do velho. Por ver vários furos de bala no teto, provavelmente bem mais dos dez ditos pelo velho, Alexandre tem um devaneio e percebe, finalmente, que será preso e entrará num ciclo. Ele sentará no banco e esperará, por anos, a chegada de outra pessoa para tomar seu lugar. Ele, agora, é o velho, que esperou, por apenas dois anos, a chegada de outra pessoa para tomar seu lugar.

Quanto à questão da Ema, é um pouco mais complexo. A maioria das opiniões alega que Ema seria uma pessoa que seduz as pessoas para, um dia, entrar no tal apartamento e, finalmente, tomar o lugar de quem está lá sentado. Devido ao ciclo infinito que a história toma, a Ema, então, não seria apenas uma pessoa. Ela pode ser trocada também, assim como o velho na cadeira.

Agora, muitos podem se preocupar: e onde está o elemento fantástico característica da escrita de Rubião? Bem, além do início, como já dito, o fato de Alexandre ir para o apartamento é um enigma. Ninguém sabe o porquê. Teria sido indicado por alguém? Foi levado? É um enigma. Afinal, é Rubião.

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