Poemas ou poetas?

By 06:21



Nos tempos atuais, é mais fácil achar um unicórnio rosa do que uma boa poesia.

Quando falei esta frase no meio de um grupo de literatos que justamente elogiavam a quantidade de livros de poesia chegando às livrarias, fui encarado com desconfiança e, em seguida, a conversa se direcionou para águas mais calmas. No entanto, longe de ser algo rabugento, foi uma afirmativa exasperada: onde estão as poesias? O que fizeram com elas?

Não se iludam pela quantidade. O mundo está cheio de poemas. Acessem qualquer rede social e serão encharcados por poemas de todos os tipos. As livrarias passaram a contar com prateleiras dedicadas aos livros de poemas, algo impensável anos atrás. Muitas pessoas se identificam de forma orgulhosa como poetas e existem escritores que inclusive afirmam fazer algo chamado de “prosa poética” – um eufemismo para “olhem só como eu escrevo bonito” -, mas, na verdade, as pessoas sequer sabem a diferença entre poema e poesia. Poema é a forma, poesia é o sentimento. Qualquer um pode fazer um poema, pouquíssimos fazem poesia. A melhor definição de poesia ainda é aquela que o Paul Valéry deixou: “A poesia é a intenção de representar, mediante os recursos artísticos da linguagem, aquelas coisas que as lágrimas, as carícias, os beijos, os suspiros, etc., expressam vagamente.” Pensando nisto, em quantas poesias você sentiu a lágrima do outro correr pela sua face, ou a sensação de lábios invisíveis contra os seus, ou o toque sensível que passou toda a compreensão necessária para um momento de angústia, ou o suspiro que você não deu se espalhar pela sala?

Existem muitas pessoas escrevendo poemas e, talvez por este motivo, seja cada vez mais difícil achar a poesia. Ao contrário do que se imagina, poesias não se fazem com palavras soltas no meio do papel, nem com jogos estéreis de som e muito menos com imagens edificantes ou lições de vida. Aristóteles dizia que “a natureza abomina o vácuo” e, assim, a natureza precisa extirpar a poesia do vácuo, precisa dar-lhe forma para que possa ecoar no vácuo interno de outros seres humanos. Dizia Gaston Bachelard que “a poesia ensina a respirar bem”. Poesia é respiração.

Nos tempos modernos, por causa da velocidade da leitura e da busca constante por mais produção (ou estar na mídia), vejo alguns escritores apresentando livros de poemas como uma forma de publicar algo que não seja muito trabalhoso. É a estratégia do “não tenho tempo para fazer algo mais trabalhado, vou jogar algumas frases bonitas em um papel, dizer que é uma poesia e, depois, publicar”. É um jogo ardiloso: quem será capaz de criticar o “eu lírico” de um escritor sem criticar o eu físico? Quem pode dizer que ele não sabe arquitetar imagens poéticas, se sabe manusear palavras? Quem poderá mostrar que o rei está nu, se a poesia é diferente da prosa e, em tese, aceita tudo o que esteja na forma de poema?

O pensamento está invertido. É muito mais difícil fazer uma boa poesia do que um texto em prosa. A facilidade da forma só deixa mais difícil ainda esconder os problemas de estilo. Para um leitor atento, a poesia malfeita inclusive desconstrói a prosa do autor, mostra a planura dos seus sentimentos, os defeitos da sua visão de mundo. Existem momentos em que é melhor ficar em silêncio e, se for para concretizar uma poesia ruim, mais apropriado seria preservar as palavras ao invés de desonrá-las. Palavras também possuem sentimentos.

Ainda assim, existe o aplauso das multidões a dar suporte para os maus poetas. Por muito tempo, não entendi como as pessoas podiam saudar poemas ruins e passá-los adiante como se fossem maravilhosos, até o momento em que percebi que boa parte destes poemas versam sobre mensagens dignas de autoajuda ou sobre sentimentos como saudade, amor e tristeza. É o público da literatura de autoajuda e das novelas se ramificando para dentro dos poemas, confundindo por completo aqueles que buscam as verdadeiras poesias.

Muitas pessoas acham que o verso livre permite tudo em termos de poesia. Estão erradas. Os poetas que usaram o verso livre conheciam – e estudavam – as formas clássicas de poesia e, exatamente por este motivo, foram capazes de transgredi-las. Não existe isto de alguém sentar, escrever dez frases bonitas e indiferentes e chamar de poesia. O verso livre é a poesia mais impossível de ser encontrada, pois tem rimas e ritmos que só se tornam visíveis pelos sentidos, fora de uma lógica cartesiana. Para achá-la, é necessário se perder, ser como o albatroz que mergulha do céu na esperança que o cintilar das águas seja um peixe, e poucos tem tamanha coragem.

Falta educação poética para os escritores e, por consequência, para o público leitor. Faço meu depoimento: não gostava muito de poesia. Nos últimos dez anos, por influência decisiva da minha professora Léa Masina e da sua “dieta de poesia” (ler uma poesia por semana; ainda não cheguei ao uma poesia por dia, mas já ultrapassei o uma poesia por mês, algo alvissareiro), acabei lendo muito. Também estudei bastante, li os teóricos e aquilo que os grandes poetas ensinaram. Tive minhas próprias ideias sobre poesia e, agora, sou capaz de entendê-las (e me aterrorizar, pois ler poesias, para mim, é a própria extensão do medo) e até escrevê-las. No entanto, o maior respeito que eu tenho para as minhas poesias é evitar que venham ao mundo enquanto não forem dignas e, por este motivo, sei que dificilmente deixarão minhas gavetas. Não tenho pressa alguma para acertá-las; deixo elas respirarem sozinhas.

Em um artigo para o Jornal do Brasil veiculado em 20/07/1974 e intitulado “A educação do ser poético”, Carlos Drummond de Andrade afirma que “o uso da escrita poética na idade adulta costuma degenerar em abuso que nada tem a ver com a poesia. Fazem-se demasiados versos vazios daquela centelha que distingue uma linha de poesia, de uma linha de prosa, ambas preenchidas com palavras da mesma língua, da mesma época, do mesmo grupo cultural, mas tão diferentes”. A poesia precisa ser reconquistada e deixar de ser abusada por maus poetas. Ainda que a sua capacidade de se autoinventar seja infinita, o mundo seria um local bem melhor se os poetas respeitassem mais as poesias e menos a facilidade enganadora das imagens poéticas fáceis.

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