Heráclito e Camões: A Permanência e a Mutabilidade da Mudança

By 08:53


À primeira vista, pode parecer que nada têm em comum esses dois nomes. Um pertence ao início da filosofia, marcada pelo engatinhar na investigação da natureza; outro representa um dos maiores nomes da poesia de língua portuguesa. Qual distância maior poderia haver entre os dois? Ainda assim, uma analogia é possível. E se a filosofia – como tendo a acreditar – é complementada pela literatura, e vice-versa, a comparação que irei propor, se bem elaborada, pode lançar luz sobre ambos os autores e suas obras.

Comecemos com Heráclito, por mera questão cronológica. O pensador de Éfeso é um dos chamados pré-socráticos, considerados os primeiros filósofos do pensamento ocidental. Antes de mais nada, cabe notar a extrema dificuldade de falar dos pré-socráticos. De seus escritos – que, já de início, não são muitos – pouco sobreviveu até os nossos dias. Acrescente-se, a isso, a dificuldade de tradução fiel dos fragmentos que encontramos, e temos uma barreira à reflexão sobre eles que não é facilmente transponível. Por isso, aviso logo que não pretendo enunciar verdades sobre o seu pensamento, mas apenas uma interpretação particular, apoiada, de maneira geral, numa reflexão sobre os fragmentos do autor e a crítica feita a ele por Hegel, em sua obra, “Preleções sobre a história da filosofia”.

Heráclito era conhecido como “O obscuro”, por seu estilo aforístico altamente enigmático e conciso. Suas máximas são muito curtas, o que configura mais uma dificuldade para interpretá-lo. É ele o autor da famosa máxima, que tanta importância tem na história da investigação filosófica e, mais tarde, científica: “a natureza ama ocultar-se”. É ele também o grande nome, dentre os pré-socráticos, a tratar do aspecto fundamental que a mudança desempenha no mundo.

Se eu pudesse resumir a doutrina de Heráclito sobre a mudança em uma de suas máximas, escolheria a seguinte, que é, aliás, bem popular: “Tu não podes descer duas vezes sobre um mesmo rio, porque novas águas correm sempre sobre ti”. É essa, basicamente, a tese de Heráclito: tudo flui, nada permanece o mesmo. O que parece bastante certo, apesar de procurarmos sempre certa constância nas coisas. O avanço do conhecimento atual nos permitiu saber que, mesmo quando algo parece completamente imóvel, na verdade, as partes que compõem esse algo estão em movimento. Como, em geral, encaramos o movimento como mudança, parece que Heráclito acertou ao dizer que tudo é mudança, e que tudo está sempre a fluir, como as águas de um rio.

Mas a posição de Heráclito é ainda mais profunda. Segundo ele, o “ser não é mais que o não-ser”. Seguindo a interpretação de Hegel, penso que é esta a ideia: nada realmente é, além do devir. Pois somente é o que permanece, e nada permanece. Assim sendo, o que é, no momento que é, já deixou de ser, e passou a ser algo diferente. Assim, o ser, enquanto ser, é, também, o não-ser. Os dois opostos são idênticos.

Eis um raciocínio muito abstrato, mas extremamente interessante e profundo. Para Hegel, esse é o princípio universal que Heráclito enunciou, e ele significa que são idênticos o ser e o não-ser, pois eles são apenas uma coisa, o devir. O ser é o não-ser, torna-se não ser no exato momento que é ser. O devir do não-ser, e do ser, e do não-ser, e assim por diante.

Tudo é Um, dizia Heráclito, pois são os opostos que, harmonizados entre si, formam uma unidade. Cabe aqui uma analogia com a música. Não há harmonia musical se temos apenas sons agudos, ou apenas sons graves. A combinação dos dois de maneira adequada forma a harmonia, é com essa combinação que surge a unidade musical. Dessa combinação de opostos, diz Heráclito, surge a unidade de tudo. Dos opostos que geram a mudança. É tão notória a impermanência de tudo que discípulos de Heráclito afirmaram que não se pode nem mesmo entrar no rio, pois, no exato instante em que se entra nele, e ele é ser, já se tornou não-ser.

Mas essa Unidade, advinda dos opostos, da mudança constante, gera uma permanência, que é o próprio fato da mudança. Ou seja: nada é permanente, exceto a mudança. A mudança, sim, é permanente, ela está sempre acontecendo, e não deixa nunca de se dar, e de modo uniforme, cíclico. Heráclito identifica esse princípio da mudança, dizendo que o universo vem a ser e a não ser através do fogo, elemento que melhor expõe o caráter transitório das coisas. Assim, “Nem um deus nem um homem fabricou o universo mas sempre foi e é e será um fogo sempre vivo, que segundo suas próprias leis, se acende e se apaga”. Nesse ponto, deixemos Heráclito de lado por um momento, com a seguinte pergunta: será que a mudança é, de fato, permanente? Ou será que também ocorre a “mudança da mudança”?


Passemos a Camões. Genial poeta português, autor dos Lusíadas e de incontáveis obras magníficas. Entre essas obras, destacam-se, além da epopeia citada, alguns sonetos de enorme qualidade, como aquele muito famoso, sobre o amor (“O amor é fogo que arde sem se ver…”), ou, no caso que analisaremos aqui, um soneto intitulado “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”:

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades. 
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades. 
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto. 
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

 O soneto trata da lembrança de forma poética, é claro, ou seja, sem pretensão explicitamente filosófica. Mas ele oferece uma fonte de reflexão interessante, pois a mudança é vista sob um prisma diferente do de Heráclito. Enquanto o filósofo se concentra na mudança física da natureza, Camões trata da mudança psicológica dentro do tempo. Ou seja, que a natureza muda, que há mudança externa ao homem, Camões sem dúvida admite; mas vai além, e fala da mudança interna do ser humano, que é tão presente quanto àquela da natureza.

O soneto afirma: mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, e todo o mundo é composto de mudança. A mesma tese de Heráclito, como se pode ver, é afirmada. A mudança, a novidade, é contínua. O soneto tem uma abordagem bem mais sentimental e dramática, falando sobre a mudança do bem em mal, do “doce canto” em choro. Parece, no entanto, haver uma continuidade nas coisas, que é a continuidade do mal, que fica como “mágoa na lembrança”. Mas é claro que se pode dizer que não é o mesmo mal que ali está, mas um mal diferenciado, transformado pelo tempo. Nem a beleza do poema, nem seu, digamos “rigor filosófico”, é prejudicado por isso.

O ponto que permite questionar a tese de Heráclito vem na última estrofe: “E, afora este mudar-se cada dia/Outra mudança faz de mor espanto/Que não se muda já como soía”. Essa última palavra é conjugação do verbo “soer”, sinônimo de “costumar”. Ou seja, a mudança já não se dá como de costume. A mudança já não ocorre do mesmo modo. A mudança mudou.

Penso que Camões tocou num ponto muito importante, que é o caráter transitório da própria mudança. Há mudança sempre? Penso que sim. Mas há mudança sempre do mesmo modo? Não. A ideia de Heráclito, de que a mudança é sempre a mesma, ocorrendo de forma cíclica, é difícil de ser sustentada. Há uma dose de incerteza bastante grande no mundo, e penso ser difícil afirmar que a mudança se dá de forma uniforme, sempre. A noção moderna é de que a natureza não é uniforme; ela muda até mesmo no seu jeito de mudar! Reforça-se a tese primária de Heráclito, mas permite que olhemos com alguma desconfiança para o aprofundamento dessa tese. A mudança externa não é uniforme – sabe-se, hoje em dia, que as chamadas “leis do universo”, ou “leis da natureza”, não são necessárias ou infalíveis; elas não se aplicam, em certos momentos, ou se aplicam de modo diverso em alguns outros; nem o é a mudança interna – não é preciso aprofundar, aqui, a inconstância tremenda da mudança interna do ser humano, muitas vezes disforme e caótica. Eis um ponto em que Camões ensina Heráclito, um ponto em que o encontro da filosofia com a literatura resulta em algo extremamente frutífero para ambos os lados. E, assim, Éfeso e Lisboa nos permitem pensar melhor um aspecto fundamental do universo e de nós mesmos.

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